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Passeio de bike conta a história da queda do Muro de Berlim
- Créditos/Foto:visitBerlin/Philip Koschel
- 08/Novembro/2019
- Paulo Basso Jr.
Ekki nasceu há 50 anos em Berlim, do lado da ex-Alemanha Oriental. Quando era criança ameaçou pular o muro por diversas vezes com os amigos. Queria conhecer o outro lado. Saber como era o resto do mundo, cujas histórias ouvia seus pais recordarem com saudades. Nunca teve coragem. A não ser em 9 de novembro de 1989, quando a parede de concreto de 155 km que trincava a cidade em duas partes finalmente veio abaixo.
“Jamais me esquecerei desse dia. Passei para o oeste de Berlim assim que pude, abracei pessoas que jamais tinha visto, enchi a cara de cerveja e festejei até a manhã seguinte”, relembra emocionado.
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Conheci Ekki há alguns anos e logo percebi que ele era um exemplo vivo da cidade mais vanguardista da Europa, que luta para se renovar a cada dia sem deixar de exibir as feridas profundas do seu passado. Ele trabalhava com o objetivo de dar ao filho a infância que lhe foi roubada, mas cujas lembranças o transformaram em um dos melhores profissionais do seu ramo. Ekki hoje é ator, um contador de histórias que, por anos, atuou como guia da Berlin on Bike, empresa que promove tours de bicicleta pela capital alemã. Entre eles, um que percorre os rastros do fatídico muro.
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Queda do Muro de Berlim
Há mais de 30 anos Berlim comemora a queda da estrutura – que curiosamente ficou em pé por 28 anos e simbolizou a Guerra Fria, travada entre o mundo capitalista, comandado pelos Estados Unidos, e o comunista, liderado pela ex-União Soviética. Hoje, pedalar ao lado de um guia como Ekki é uma oportunidade ímpar de conhecer a fundo a história recente da humanidade. É um exercício de sociologia realizado na prática, ao mesmo tempo cruel e deslumbrante, que nenhum livro é capaz de estimular.
O passeio custa 24 euros e pode ser feito individualmente ou em grupos de até 15 pessoas, com guias que falam alemão, inglês ou espanhol. Dura três horas e meia e percorre aproximadamente 15 km. Não se assuste: Berlim tem um mar de ciclovias e uma cultura bem desenvolvida de respeito aos ciclistas. Fora isso, a cidade é plana e exige esforços físicos módicos. E, se mesmo assim você não se convencer, dá para alugar bicicletas elétricas e pedalar mais tranquilo.
Rastros do terror
O tour teve início em Kulturbrauerei, antiga fábrica de cerveja transformada em centro cultural, localizada em Prenzlauer Berg, próxima à estação de trem Eberswalder Str, no antigo lado oriental de Berlin. Na sede da Berlin on Bike, os visitantes escolhem as magrelas e seguem para as ruas do bairro, onde alguns prédios ainda não revitalizados após a unificação teimam em permanecer em pé.
Ekki abriu o portão de um deles como se estivesse em casa. Percorremos então um corredor estreito e sinistro, com paredes pichadas e que terminava em um pátio. Lá dentro, era possível comparar a fachada semidestruída da construção à do edifício lateral, já modernizada.
O guia explicou como as famílias viviam por lá nos tempos mais difíceis do período comunista, usando banheiros comunitários e sem calefação. Enquanto isso, a outra metade da cidade, curiosamente ilhada ao centro da ex-Alemanha Oriental (sim, o lado oeste de Berlim também ficava fora da ex-Alemanha Ocidental, quase que no coração do país comunista) usava e abusava dos bens materiais. Hoje, os apartamentos pertencem a estudantes e artistas que se mudaram para a cidade em busca da atmosfera renovadora que paira na região.
Cidade rachada
Isso tudo serviu apenas como aperitivo para a parada seguinte, na Bernauer Strasse. É nessa rua que foram documentadas as imagens mais impactantes de 13 de agosto de 1961, quando, após uma madrugada de trabalho intenso por parte dos soldados da ex-Alemanha Oriental, Berlim amanheceu rachada por uma franja de concreto, com arames farpados e tanques de guerras por todos os lados.
A Bernauer Strasse destacou-se por causa de um impasse. As casas da rua ficavam exatamente na fronteira e, por isso, não foi possível construir um muro por lá. Eis então que os militares decidiram simplesmente tapar as janelas e portas dos fundos das residências com tijolos, de modo a impedir que os moradores passassem para o lado ocidental.
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Era um domingo. As pessoas queriam apenas ir à igreja ou ao cemitério localizados na área oposta, mas tiveram sua privacidade brutalmente violada. Houve desespero. Dezenas de cidadãos se atiraram pelas janelas de suas casas. O mundo assistiu a tudo desolado, mas em silêncio.
Sob o temor da explosão da guerra e com boa dose de comodismo, o Ocidente esboçou críticas, mas pouco reagiu. Os governantes da Alemanha Oriental, que até então negavam a construção do muro, pregaram que a divisão fez-se necessária, pois essa seria a única forma de separar o futuro (comunista) do passado (capitalista).
Nove dias depois, em 22 de agosto de 1961, morria Ida Siekmann, decorrente de injúrias sofridas após saltar da janela do terceiro andar de sua casa, na Bernauer Strasse. Ida foi a primeira vítima da nebulosa cortina que mudou a história de Berlim.
Faixa da morte
As pedaladas pela história seguiram rumo ao Mauer Park (Parque do Muro), região coberta por um extenso gramado onde os berlinenses costumam, hoje em dia, tomar sol no verão. Antigamente, o local era dividido pelo paredão, cuja marca pode ser vista no chão em uma linha dupla de paralelepípedos.
Do lado leste, há um fragmento do muro sobre o qual os torcedores do Dynamo de Berlim – time de futebol da parte oriental, cujo estádio fica nessa área – tinham uma vista panorâmica da porção ocidental. Esse paredão, porém, nunca fez parte do muro original, mas sim de uma divisão secundária, que corria paralelamente à parede de concreto em quase toda a sua extensão.
Explica-se: ao contrário dos moradores do oeste, que durante quase toda a existência do muro podiam tocá-lo e, muitas vezes, até passar para o outro lado, os cidadãos do leste sequer podiam chegar perto dele. O limite era a tal divisão secundária, quase toda feita de madeira e arame farpado, mas que ao lado do estádio do Dynamo era de concreto justamente pelo acúmulo de pessoas que ali se juntavam para assistir às partidas.
A área entre o muro original e a cortina paralela ficou conhecida como dead strip (algo como faixa da morte). Por ela, espalhavam-se soldados armados, cães de guarda e tanques de guerra.
É possível entender melhor como a faixa funcionava na parada seguinte, quando as bicicletas retornam à Bernauer Strasse após passarem pela Bornholmer Strasse (a primeira rua liberada após a queda do muro). Nesse trecho, um pedaço com cerca de 200 metros de extensão e quase 4 metros de altura do muro foi reconstruído, assim como a dead strip. Trata-se do Berlin Wall Memorial, erguido para relembrar (e para ninguém nunca mais repetir) os anos em que a cidade era rasgada ao meio.
Há uma torre de observação para ver tudo do alto e ter uma noção clara do que se passava em Berlim. Na base da estrutura, vídeos mostram cenas chocantes do dia em que o muro foi erguido e de como os cidadãos foram forçados a se habituar à construção.
Fragmentos intactos
Quem quiser ver um pedaço original e intacto do Muro de Berlim, porém, tem que ir até a região de Berlin-Friedrichshain, mais precisamente à Rua Mühlenstrasse. É lá que fica a East Side Gallery, parede com cerca de 2 km de extensão situada às margens do Rio Spree e que se transformou na maior galeria de arte a céu aberto do mundo.
O roteiro da Berlin on Bike não passa por lá, mas basta pegar um metrô (há uma estação praticamente em cada esquina da capital alemã) e saltar nas estações Ostbahnhof ou Warschauer Strasse para ver o trecho de concreto completamente grafitado.
De volta à trilha de bicicleta, há outro fragmento original do período em que a cidade era dividida em duas partes que vale a visita: uma das 302 torres de vigilância usadas pelos soldados da Alemanha Oriental para impedir a fuga dos cidadãos para o oeste.
Apenas três delas permanecem em pé, entre as quais uma que se transformou em um memorial em homenagem a Günter Litfin, primeira vítima abatida a tiros após o muro ser erguido. Litfin planejou passar a nado para o lado ocidental em 24 de agosto de 1961, 11 dias após a parede surgir, quando foi almejado por um soldado posicionado na torre da Kieler Strasse, número 2.
Seu irmão, Jürgen Litfin, mantém um pequeno museu no local, com fotos e informações a respeito de muitas outras vítimas do regime – como Peter Fechter, famoso por sangrar até a morte em frente a dezenas de pessoas, que nada podiam fazer; e Chris Gueffroy, o último a pagar com a vida, em fevereiro de 1989. Como a Alemanha Oriental não registrava os casos, não há um número exato de refugiados assassinados, mas estima-se em cerca de 200.
Estações fantasmas e futuristas
A cabeça já estava perturbada, mas esforcei-me para pedalar com Ekki até o moderninho distrito de Mitte, onde há símbolos de animais nas ruas em referência aos únicos seres que podiam passar livremente de um lado para o outro.
Ali também existem estações de trem fantasmas, como a Nordbahnhof, abandonada por dar acesso à área oposta; e avenidas fronteiriças onde se mantinham postos de controle. Tudo isso em meio aos bares e baladas que hoje transformaram o bairro em um dos mais fervidos na badalada noite de Berlim.
Quem passa por lá não demora a avistar a Hauptbahnhof, a estação central de trem de Berlim, toda de vidro e reformada antes da Copa do Mundo de futebol, em 2006. A reluzente edificação deixa claro como a cidade progrediu durante os 30 anos que sucederam a unificação, a ponto de se transformar em uma espécie de capital da Europa e um dos destinos mais desenvolvidos do planeta.
Por dentro do Reichstag
Já do outro lado do Rio Spree, logo após passar pela Hauptbahnhof, Ekki me mostrou um dos maiores cartões-postais de Berlim: o Reichstag. Pouco relacionado ao muro, já que durante a divisão da cidade ficou praticamente abandonado, o prédio do parlamento alemão remete a outra história negra de Berlim: a de Hitler. Era ali que o tirano comandava o 3º Reich. O domínio da edificação pelos soviéticos, em 1945, tornou-se símbolo da queda do governo nazista.
Hoje, o Reichstag alia o prédio antigo, erguido em 1894, a estruturas moderníssimas, construídas na década de 1990 para celebrar a volta do parlamento ao local. Entre elas, destaca-se uma monumental cúpula de vidro, que pode ser observada de longe e é aberta ao público. Uma vez em seu interior, tem-se uma ótima vista tanto do lado ocidental quanto do oriental de Berlim.
Portão de Brandemburgo
A parada seguinte era a mais desejada ao longo do tour: enfim, chegamos ao famoso Portão de Brandemburgo. Ekki me explicou que, enquanto o Muro de Berlim existiu, curiosamente, o maior símbolo da capital alemã ficou isolado dentro da faixa da morte, inacessível para os cidadãos do leste e do oeste.
O guia também desmentiu um dos maiores boatos da Guerra Fria: que a Quadriga – escultura em que a Deusa da Vitória conduz quatro cavalos – situada no topo do portão originalmente ficava apontada para o oeste e teria sido invertida pelos comunistas.
“A verdade é que ela sempre esteve virada para o lado oriental”, garantiu. E é desse lado que dá para fazer as melhores fotos do portão, enquanto do outro fica o Tiergarten, maior parque urbano do mundo.
Borracha em Hitlter
Próximo ao Portão de Brandemburgo está o Monumento do Holocausto, construído entre 2003 e 2005 pelo arquiteto Peter Eiseman para homenagear os judeus europeus mortos pelos nazistas. Trata-se de um espaço maior que um campo de futebol, com 2.711 blocos de concreto escuro, dos mais variados tamanhos, que lembra um cemitério repleto de túmulos. Não é bonito de ver, mas atinge direitinho o seu objetivo: provocar impacto.
Apenas alguns metros depois, entre às ruas Ebertstrasse e In den Minster, Ekki parou a bike no estacionamento de um condomínio, aparentemente sem a mínima graça. Segundo ele, estávamos acima do misterioso bunker de Hitler, cujos sinais foram totalmente apagados para que o líder nazista não se tornasse “pop” e atraísse peregrinos.
“O governo deve ter algum tipo de acesso ao antigo esconderijo, mas o povo sequer sabe onde era o ponto exato de entrada, pois tudo na superfície foi destruído” contou o guia. “Melhor assim. Há loucos para tudo”, ressaltou.
Ei, Charlie, cadê você?
O passo seguinte era conhecer a Potsdamer Platz, praça que, até a unificação, não passava de um lugar ermo e que hoje reúne edifícios, cinemas, restaurantes e um átrio coberto por uma imensa tenda. O local merece ser visitado sem pressa à noite, quando luzes coloridas o deixam mais bonito. Ao lado dele, estão expostos alguns fragmentos do muro que rendem boas fotos.
Novas pedaladas vieram até eu dar de cara com a Gendarmenmarkt, uma das praças mais bonitas da Europa. Nela, há uma sala de concertos ladeada por duas belíssimas catedrais, a Germânica e a Francesa. O pitstop mostrou-se perfeito para um café e uma água antes de seguirmos em frente.
Refeito, acompanhei Ekki até o Checkpoint Charlie, único posto de controle pelo qual estrangeiros podiam atravessar de uma Alemanha para a outra, à época do muro. O próprio guia deixou claro antes de chegarmos: “é um lugar famoso, mas decepcionante, porque é bem sem graça”. E ele tinha razão.
No meio de uma avenida com mão dupla, há uma pequena guarita com uma barricada “protegida” por guardas falsos do tempo da Guerra Fria e circundada por muitas barraquinhas de souvenires. Na mais interessante delas é possível fazer carimbos da ex-União Soviética e da ex-Alemanha Oriental no passaporte. Supostos restos do muro, então, são vendidos aos montes.
O que mais vale visitar por lá, entretanto, é o Mauermuseum (Museu do Muro), que fica atrás do posto de controle e retrata o período da Cortina de Ferro. Fora isso, a região contempla o prédio onde funcionava a Gestapo e a SS, antigas forças policiais do regime nazista, e que hoje abriga uma galeria com informações e fotos da Segunda Guerra Mundial batizada de Topografia do Terror.
Museus de Berlim
O Checkpoint Charlie marca o fim do trajeto elaborado pela Berlin on Bike, mas engana-se quem pensa que o passeio acaba por lá. O roteiro de volta à agência é marcado por diversas e gratas surpresas, todas elas espalhadas pelo lado oriental – hoje o mais valioso de Berlim, já que conta com uma série de lugares históricos.
É bem louco andar de bike, por exemplo, pela Ilha dos Museus, área situada entre dois braços do Rio Spree, repleta de palácios antigos que foram transformados em museus. Em dois deles, pelo menos, todo mundo tem de voltar outra hora, com mais calma: um é o Pergamonmuseum, que guarda um dos portões da Babilônia, e o outro é o Deutsches Historisches Museum, prato cheio para os fãs de história.
A avenida que corta a bela ilha dedicada à arte, chamada Unter den Linde, é uma espécie de Champs-Elysées dos berlinenses, onde estão outras joias da cidade, como a catedral Berliner Dom. bem como a Rotes Rathaus, prefeitura do município, o antigo Palácio da República, usado como sede do parlamento pela Alemanha Oriental, e a Alexanderplatz, que abira um símbolo de poder do período comunista, a Torre da TV, com 368 metros de altura.
Um brinde ao futuro
Para completar o passeio, o guia sugeriu uma parada em uma barraquinha de rua para que eu conhecesse outro ícone de Berlim, tão histórico quanto o muro, mas muito mais saboroso: o currywürst, pão com linguiça ao picante molho curry que se tornou o prato mais tradicional da cidade, tal como a feijoada no Brasil.
Como acompanhamento, sorvi uma cerveja alemã de altíssima qualidade, com direito a um brinde a um dos lugares mais fascinantes do mundo, cujas feridas jamais devem se cicatrizar, mas que hoje estão limpas o suficiente para permitir que o filho de Ekki brinque do lado que quiser.
Este texto é uma atualização da reportagem original publicada no especial República Checa e Alemanha, da revista Viaje Mais, parceira do Rota de Férias.